Que o fantasma do medo que oprime não nos force à ocultar verdades.
Que a desesperança não nos impulsione a abdicar dos nossos sonhos.
Que a mão opressora não nos convença que somos incapazes de mudar o que precisa ser mudado.
Que as palavras jogadas ao vento não se percam nos labirintos da desatenção, que encontrem eco e se proliferem.
Que a vontade de arrefecer ante as injustiças não nos sirvam de fertilizantes à alienação.
Que a tensão que por vezes nos impulsiona a fazer vista grossa não seja entrave a ao menos expressar o que pensamos e sentimos.
Que o espelho de um passado sombrio nos sirva de entusiasmo para não mais aceitar o inaceitável.
Que os sons estridentes que somos forçados a ouvir não nos empurre à incultura - tipo fulerage music.
Que as pessoas a quem amamos sejam pelo menos compreensivas com o nosso jeito de ser inconformado.
Que minhas duras palavras não sejam interpretadas como subversivas e sim como um simples grito de alerta; apenas respeitadas como forma de desabafar minha insatisfação com o sistema.
Que essa minha vontade de - vez em quando - abrir mão das minhas convicções sejam tragadas pelos redemoinhos dos ventos tempestivos.
Que a tensão que me corrói por dentro seja amenizada pelo eco do bom senso.
Que o silêncio dos incautos não nos instigue a pensar - e dizer - "não, não é da minha conta".
Faça uma lista de grandes amigos
Quem você mais via há dez anos atrás
Quantos você ainda vê todo dia
Quantos você já não encontra mais
Faça uma lista dos sonhos que tinha
Quantos você desistiu de sonhar
Quantos amores jurados pra sempre
Quantos você conseguiu preservar
Onde você ainda se reconhece
Na foto passada ou no espelho de agora
Hoje é do jeito que achou que seria?
Quantos amigos você jogou fora
Quantos mistérios que você sondava
Quantos você conseguiu entender?
Quantos defeitos sanados com o tempo
Eram o melhor que havia em você
Quantas mentiras você condenava
Quantas você teve que cometer
Quantas canções que você não cantava
Hoje assobia pra sobreviver
Quantos segredos que você guardava
Hoje são bobos ninguém quer saber
Quantas pessoas que você amava
Hoje acredita que amam você.
Eu insisto em cantar
Diferente do que ouvi
Seja como for recomeçar
Nada há mais há de vir
Me disseram que sonhar
Era ingênuo - e daí?
Nossa geração não quer sonhar
Pois que sonhe a que há de vir
Eu preciso é te provar
Que inda sou mesmo um menino
Que não dorme - a planejar
Travessuras
Que fez do som da tua risada
Um hino.
Breve ontologia de um matuto sertanejo
Sou matuto sou roceiro
Me criei nos cafundó
Sou sertanejo da gema
Lá das banda dos moco
Lá quando o Sol tá a pino
Castiga o coro sem dó
Campeei gado nas brenha
R a n q u e i t o c o fui carreiro
Morei nin casa de taipa
A d i s p o i s fui ser o l e r o
Fiz tijolo inté fiz teia
Pás galinha fiz p u l e r o
Num fiz teia cu'ma aranha
Mas pá c u b r i r os c e l e r o
Donde guardava os provento
T r a b a i o d'um ano i n t e r o
T o m b é m pá fazer tapera
Qui'abrigava us c u m p a n h e r o
Seu m i n i n o se'eu li conto
O c e d i f i c e acredita
A vida de sertanejo
Até parece desdita
Mai juro que'é assim mermo
Quem vê de perto acredita
Nos tempo de t r u v u a d a
As g o t e r a p r e t u b a v a
Pingava pá toda banda
Nos cantinho n o i s ficava
I n c u i d o tá quá pinto
In riba dos moi de fava
Nos tempo de verão brabo
Nas catinga eu mim' fiava
Meu pai c u n 'a i s t r o v e n g a
Ar macambira cortava
F a c h e r o m a n d a c a r u
Era o qui a gente i n c o n t r a v a
Fazia grandes coivara
E os i s p i n h o queimava
Pá mode o gado c u m e r
A p o i s a fome era braba
Antes de 'o fogo apagar
No meio do fogareu
O rebanho i n b o c a v a
Os b i c h i n c u m i a tanto
Qui as veis i n t é se babava
É p u r i s s o qui li conto
Qui é essa minha sina
Fui o avesso do avesso
O raio da c i l i b r i n a
Correndo atras de gado
Me criei la nas campina
Cedo peguei no arado
C a r p i n a v a tangi boi
Assim minha infância foi
Nas brenha lá do cerrado
Amansei cavalo brado
Correndo no m e i do gado
T o m b e m a m a n c e i jumento
Burro, carneiro pá mode
Cambitá tijolo e teia
Pois lá naquelas aldeia
Quando a coisa tava feia
Cambitava i n t e n i n bode
Passava no m e i das guerra
Qui a m u l e c a d a fazia
De badoque e de peteca
Qui durava i n t é um dia
Pedra c u m i a no centro
Mermo assim eu num fugia
Escanchado n'um jumento
Qui nem mermo sela tinha
Me sentia importante
Pois mermo sendo tampinha
Num perdia pá ninguém
Lá naquelas freguesia
Pastorei carneiro e cabra
Ovelha vaca e peru
Quando o Sol tava queimando
Logo eu ia m' i m c o s t a n d o
C a r mão cacimba cavando
Nas sombra d u r mulungu
Pá mode encontra água
A p o i s a sede era braba
Lá naquela região
Da donde a gente morava
Era assim lá no sertão
Qui a vida n o i s levava
Minha infância assim foi
Labutei desde menino
E mesmo sendo franzino
Topava qualquer parada
Pernoitava nas estrada
Acordava madrugada
Pensamento indo ao léu
Divagava sem limite
Sempre fui contra o alvitre
De quem machucava gente
Do sertão trago a semente
Na cachola q u i n é m véu
Macambira e as urtiga
Nas perna fazia estrago
Da casca do pau pereiro
Trago comigo o amargo
Nunca conheci moleza
Do bem bom passei de largo
O sertanejo é assim
Inventa sua destreza
Dá murro in ponta de faca
Pra ele n'um tem surpresa
Aprende cá Natureza
A n'um g u e n t a r desagravo
Pá num vê aquelas cena
Meu pai de lá se 'arrancou
Trazendo c'um ele n o i s
Conselhos do nosso avô
Pá mode a gente i s t u d a r
A p o i s se a sorte ajudasse
Uns pudia ser doutor
I s c o l a num tinha lá
Naquelas brenha esquecida
Meu pai juntou toda t r e n h a
Vendeu pá buscar guarida
Vinhemo então pá cidade
Pá recomeçar a vida
Eu já era m u l e c o t e
C'uns doze anos de 'idade
I s t r a n h e i q u i n é m a gota
A vida aqui na Cidade
Mermo assim fui me ajeitando
Pegando capacidade
Mar né q i i s t u d e i poco
Pois p' r u c e já t a l u d i n
Vi tanta m u i r f a c e r a
Qui min g r a c e i de verdade
P o q u i n aprendi a ler
Essa 'é a pura verdade.
Ouro de Tolo Raul Seixas
Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros
Por mês
Eu devia agradecer ao Senhor
Por ter tido sucesso
Na vida como artista
Eu devia estar feliz
Porque consegui comprar
Um Corcel 73
Eu devia estar alegre
E satisfeito
Por morar em Ipanema
Depois de ter passado fome
Por dois anos
Aqui na Cidade Maravilhosa
Ah!
Eu devia estar sorrindo
E orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
E um tanto quanto perigosa
Eu devia estar contente
Por ter conseguido
Tudo o que eu quis
Mas confesso abestalhado
Que eu estou decepcionado
Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto "E daí?"
Eu tenho uma porção
De coisas grandes pra conquistar
E eu não posso ficar aí parado
Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo
Pra ir com a família
No Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos...
Ah!
Mas que sujeito chato sou eu
Que não acha nada engraçado
Macaco, praia, carro
Jornal, tobogã
Eu acho tudo isso um saco
É você olhar no espelho
Se sentir
Um grandessíssimo idiota
Saber que é humano
Ridículo, limitado
Que só usa dez por cento
De sua cabeça animal
E você ainda acredita
Que é um doutor
Padre ou policial
Que está contribuindo
Com sua parte
Para o nosso belo
Quadro social
Eu é que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada
Cheia de dentes
Esperando a morte chegar
Porque longe das cercas
Embandeiradas
Que separam quintais
No cume calmo
Do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora
De um disco voador
Ah!
Eu é que não me sento
No trono de um apartamento
Com a boca escancarada
Cheia de dentes
Esperando a morte chegar
Porque longe das cercas
Embandeiradas
Que separam quintais
No cume calmo
Do meu olho que vê
Assenta a sombra sonora
De um disco voado
Mesquinho Mundo Malvado - Monólogo malacabado
Mundo malvado!
Maracutaias massificam-se margeando malditas malversações.
Mal-caráteres manipulam massas, mantendo mordomias.
Madrugadas, meninos maltratados/ maltrapilhos mendigam migalhas mastigáveis/ merendáveis - minimizam miserês macabros - moram marquises.
Mocinhas - meras meninas - molestam-se, mortificam-se moralmente (m a l a f o n a s meretrizes menosprezadas) melindram-se merecidamente - merecem melindrarem-se.
Mulheres mergulham - machucadas, manobradas, mitigadas - mistificam-se: mas, moram malocas; mocambos.
Meios miseráveis, minguados - maldita mesmice milenar.
Malévolo, majestosamente mescla mentiras; mostrando mazelas, misérias, morticínios - maior maldade mundial!
Mesquinhas mentes maquiavélicas manipuladoras: menosprezam, maldizem, manobram, manipulam maliciosamente, mergulham mundos magníficos - momentaneamente - mediocridade moral!
Metrópoles, matutos magros - macrocéfalos - mastigam medias mornas.
Matungos malhados - m a r r e n t os - munindo machados, martelos - m u c h i l a s muchas - margeiam matas maiores.
Mistificáveis, movem moinhos; moendo manjares mastigáveis m e l h o r z i n h o s: macaxeira, mandioca, mingaus... - mestiços mastigam morcegos, macacos - monotonia.
Meia-noite, mesa; mariposas marcam moradias - momentos maravilha: motivação mutua - mas, mera mesmice.
Muitos migram macilentos - morarão modestamente - menos moral, menos mantimentos, mais menosprezo, maioria morre mendigando.
Mídia mostra menores metralhados, militares mandões.
Milionários maiorais, montam mansões magnificas; mordomos, m e r c e d e s, motoristas - mordomias mil - mãos maiores.
Magnatas manobram milhões - mas maioria morre minguado: moradia meia-água - menos - m a u s o l e u s marmorizados.
Mesquinho mundo malvado; merece melhorar - merecemos melhore mais.
Mesmo morresse marginalizado, mastigado, mostraria:
Muda, mundinho merda marginalizante!!!
Insisto em poetizar
Apesar do que ouvi
Teimo em recomeçar
Pouco fiz, mas há de vir
Se me dizem que sonhar é ingênuo
Simplesmente respondo:
E daí?
Vejo - e me pergunto:
Tantos jovens que não ousam sonhar
Sonho eu pois
Pelos que hão de vir
Não, não quero provar nada
Quero sim, mostrar
Que ao longo da estrada
Tropecei mais aprendi
Que mesmo sendo utopia
O sonho alimenta a alma
Alivia o cansaço - acalma.
Metade
Oswaldo Montenegro
Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio
Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
A outra metade é silêncio
Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Pois metade de mim é partida
A outra metade é saudade
Que as palavras que falo
Não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Pois metade de mim é o que ouço
A outra metade é o que calo
Que a minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que mereço
Que a tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que penso
A outra metade é um vulcão
Que o medo da solidão se afaste e o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável
Que o espelho reflita no meu rosto num doce sorriso que me lembro ter dado na infância
Pois metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade não sei
Que não seja preciso mais do que uma simples alegria pra me fazer aquietar o espírito
E que o seu silêncio me fale cada vez mais pois metade de mim é abrigo a outra metade é cansaço
Que a arte me aponte uma resposta mesmo que ela mesma não saiba
E que ninguém a tente complicar pois é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Pois metade de mim é plateia a outra metade é canção
Que a minha loucura seja perdoada pois metade de mim é amor e a outra metade também.
Cálice
Chico Buarque
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça.
ABENÇA MANUEL XUDU
O meu cordel estradeiro
Vem lhe pedir permissão
Pra se tornar verdadeiro
Pra se tornar mensageiro
Da força do teu truvão
E as asas da tanajura
Fazer vuar o Sertão
Meu Moxotó coroado
De xique xique e facheiro
Onde a cascavel cuchila
Na boca do cangaceiro
Eu também sou cangaceiro
E meu cordel extradeiro
É cascavel puderosa
É chuva qui cai maneira
Aguando a terra quente
Erguendo um véu de pueira
Deixando a tarde cheirosa
É planta qui cobre o chão
Na primeira truvuada
A noite qui desce fria
Depois da tarde molhada
É seca disisperada
Rasgando o bucho do chão
É inverno, e é verão
É canção de lavadeira
Peixera de Lampião
As luzes do vagalume
Alpendre de casarão
A cuia do velho cego
Terreiro de amarração
O ramo da rezadeira
O banzo de fim de feira
Janela de caminhão
Vocês qui'estão no palácio
Venham ouvir meu pobretinho
Não tem o cheiro do vinho
Das uvas frescas do lácio
Mas tem a cor de Inácio
Da serra, da caatingueira
Um cantador de primeira
Que nunca foi n'uma escola
Pois meu verso
É feito a foice
Do cassaco cortar cana
Sendo de cima pra baixo
Tanto corta, como espana
Sendo de baixo pra cima
Voa do cabo e se dana!